quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Governo avança no modelo de universidade subordinado ao Banco Mundial

Escrito por Valéria Nader   
05-Ago-2010

http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=4901&Itemid=9&bsb_midx=-1
 
Com exígua divulgação pela mídia, especialmente pelos grandes veículos, foi há alguns dias anunciado pelo governo o ‘Pacote de Autonomia Universitária', através da MP 435/2010 e dos Decretos de nº. 7232, 7233 e 7234.
 
Esta é mais uma das medidas do governo Lula que, a partir de um olhar raso, pode levar às tão corriqueiras críticas dos setores mais conservadores, ressaltando uma suposta maior participação do Estado na economia, com conseqüente desperdício de recursos públicos. Conclusão a que estes setores chegariam com muita previsibilidade, uma vez incluídas em tal pacote medidas destinadas a contemplar parcialmente demandas estudantis e a, aparentemente, prover as universidades federais com maiores dotações orçamentárias.
 
Essas ilações não resistiriam, no entanto, a uma avaliação um pouco mais consistente, a qual faria emergir uma realidade oposta às conclusões restritas à abordagem fiscalista. Realidade ao mesmo tempo muito reveladora de um governo que, sob a aparência e a marca repisada da busca por justiça social, caminha muito sorrateiramente na consagração e aprofundamento do status quo, na imensa maioria de suas áreas de atuação.
 
E o que significa tal consagração e aprofundamento para o tema em questão, o chamado pacote de autonomia universitária? Ao contrário do que sugere o título do pacote, caminha-se no sentido oposto, em irrefutável rota de colisão relativamente à autonomia universitária. Institucionalizam-se as fundações privadas como lócus privilegiado para a gestão administrativa e financeira das universidades, através do famoso mecanismo das Parcerias Público Privadas, que nada mais são do que um artifício para a continuidade da privatização disfarçada do patrimônio público.
 
Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nosso entrevistado especial, aprofunda a seguir sua visão sobre o novo pacote, associando-o à conjuntura econômica e política de um país que tem aprofundado sua inserção subordinada na economia mundial.
 
Correio da Cidadania: Como analisa o ‘pacote da autonomia universitária' anunciado pelo governo através da MP 435/2010 e dos Decretos de nº. 7232, 7233 e 7234?
 
Roberto Leher: Como bem apontado pela pergunta, estamos diante de um pacote de medidas ditas sobre a autonomia universitária. Não me alinho às correntes da educação que sustentam que o melhor método de análise de um instrumento normativo é a sua leitura artigo a artigo, separando nos braços da balança o que pode ser bom e o que pode ser preocupante. Penso que esses instrumentos devem ser lidos a partir do conjunto de leis e de outros ordenamentos e que o trabalho do pesquisador é buscar as principais linhas de força desses instrumentos. Neste prisma, o pacote possui uma nervura central: a associação entre a autonomia, as fundações privadas ditas de apoio e os objetivos da Lei de Inovação Tecnológica.
 
Em síntese, o pacote é constituído pela Medida Provisória nº. 495, que dispõe sobre as compras governamentais e adapta a Lei nº. 8.958/94 sobre Fundações ditas de apoio às recomendações de um Acórdão do TCU sobre as ilegalidades das mencionadas Fundações; pelo Decreto nº. 7.232, que dispõe sobre a lotação de cargos de técnico-administrativos; pelo Decreto nº. 7.233, que dispõe sobre procedimentos orçamentários e financeiros relacionados à autonomia universitária; e pelo Decreto nº. 7.234, que dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES. Este último instrumento, por contemplar parcialmente demandas defendidas pelas entidades estudantis, parece ser uma cereja no bolo do pacote para atenuar a mobilização estudantil.
 
Claro que, em função da abrangência dessas medidas, estudos mais sistemáticos são imprescindíveis, mas gostaria de tecer alguns comentários sobre a MP 435/10 – o instrumento que serve de matriz ao Decreto nº. 7.233 e, mais amplamente, à concepção de autonomia universitária do governo Lula da Silva, concepção fundamentalmente neoliberal, mas com temperos neodesenvolvimentistas. Pode parecer uma contradição falar em neodesenvolvimentismo referenciado pelo neoliberalismo. Mas penso que não.  O neoliberalismo é uma ideologia que permite o manejo político e econômico de um determinado padrão de acumulação que Harvey denominou como "acumulação por despossessão". Prefiro a conceituação de Florestan sobre o capitalismo dependente. O que importa aqui é o padrão de acumulação. Nesse sentido, digo que a autonomia é pensada nos marcos neoliberais, pois preconiza o estabelecimento de vínculos com o capital, pouco importando que o Estado seja um indutor dessa relação, visto que, como demonstrou Polanyi, não existe mercado sem Estado.
 
Correio da Cidadania: E quais são os pontos mais substanciais da MP 435 nesse sentido?
 
Roberto Leher: Vejamos alguns pontos nodais da MP 435. Em linhas gerais, ela trata dos acordos sobre compras governamentais, um dos itens mais sensíveis dos tratados de livre comércio. A medida admite que as compras governamentais estarão nos TLC, inicialmente com o MERCOSUL, mas explicita que é válida também nos futuros acordos comerciais (como o que está em curso entre a União Européia e o MERCOSUL, por exemplo). Neste caso, pode haver incentivos diferenciados do Estado aos parceiros comerciais do bloco. É possível prever que, no futuro, acordos com países europeus poderão resultar em inequívocos benefícios às corporações européias em matéria de C&T, ampliando a heteronomia cultural, científica e tecnológica do país. A partir desses balizamentos, a MP focaliza a relação entre as universidades, as fundações de apoio e a lei de inovação tecnológica.
 
A MP normatiza as parcerias público-privadas no âmbito das universidades, nos termos da Lei Inovação Tecnológica.  A MP institucionaliza as fundações privadas como loci da "gestão administrativa e financeira" dessas parcerias. Tendo em vista que há anos as universidades funcionam por programas e projetos, é possível aduzir que o alcance dessa MP é extraordinário: "entende-se por desenvolvimento institucional os programas, projetos, atividades e operações especiais, inclusive de natureza infra-estrutural, material e laboratorial, que levem à melhoria mensurável das condições das IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) e das ICTs, para cumprimento eficiente e eficaz de sua missão, conforme descrita no plano de desenvolvimento institucional". Ou seja, todos os programas e projetos de pesquisa cabem aqui! A referida MP cumpre um papel indutor desse modelo de pesquisa subordinado às PPP, posto que, doravante, as Fundações de Apoio devem estar direcionadas para a mediação privada da chamada inovação tecnológica.
 
Com a MP, as fundações de apoio podem se tornar o centro de gravidade de toda política de pesquisa da universidade, desde que mediadas por contratos de PPP. Assim, pela MP, as fundações podem remunerar os professores e estudantes de pós-graduação e graduação engajados no empreendedorismo acadêmico por meio de bolsas de ensino, de pesquisa e de extensão e podem utilizar-se de bens e serviços das IFES e ICTs contratantes. A MP sustenta também que todo aparato de C&T (FINEP, CNPq e as Agências Financeiras Oficiais de Fomento) poderá realizar convênios e contratos diretamente com as fundações (ditas) de apoio.
 
O Decreto que se refere diretamente sobre a autonomia universitária (Dec. nº. 7.233) é complementar à MP. O Decreto permite que recursos não utilizados em um exercício possam ser aplicados no exercício subseqüente, desde que na mesma rubrica, uma antiga reivindicação da comunidade universitária, mas vai muito além disso. Com efeito, o Decreto busca normatizar o "reforço de dotações orçamentárias", em particular "o excesso de arrecadação de receitas próprias, de convênios e de doações do exercício corrente" e o "superávit financeiro de receitas próprias, de convênios e de doações". O Decreto pretende institucionalizar a busca de receitas próprias e, nesse sentido, deturpa o sentido da autonomia constitucional que determina a "autonomia de gestão financeira" e não a autonomia financeira das universidades. Ora, a busca de receitas próprias está inscrita na recomendação bancomundialista de que as universidades devem buscar mecanismos para o seu autofinanciamento crescente e é isso que o governo Lula da Silva está pretendendo com o pacote.
 
Ademais, o referido Decreto aperta o nó entre o financiamento e a avaliação produtivista, determinando que a avaliação de desempenho (SINAES/ CAPES) é uma das variáveis a ser considerada na definição do montante de recursos de cada uma das IFES.
 
Correio da Cidadania: Em sua opinião, que medidas deveria tomar um governo realmente comprometido com a autonomia universitária?
 
Roberto Leher: Creio que já explicitei que avalio o pacote como um conjunto de instrumentos nocivo à autonomia universitária. Um governo comprometido com a autonomia universitária deveria focar a ação governamental na remoção dos entulhos normativos que impedem o efetivo gozo da autonomia, tal como determinado pelo artigo 207 da Constituição, norma constitucional que é incompatível com regulamentações restritivas. Assim, as novas normas deveriam privilegiar a remoção dos mecanismos heterônomos, como a definição ad hoc do orçamento das IFES pelo governo. A autonomia requer a definição de mecanismos institucionais de financiamento que independam do governo de plantão e que permitam que as IFES possam desenvolver seus projetos institucionais.
 
Correio da Cidadania: Luiz Henrique Schuch, 1º. vice-presidente do ANDES (Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior), apontou para a estranheza de se levar adiante o projeto através de MP, sem que houvesse urgência para tal. O artifício usado pelo governo revela que tipo de intenções políticas para o ensino superior?
 
Roberto Leher: A leitura da MP permite concluir que o governo pretende avançar no modelo bancomundialista da universidade como organização subordinada aos interesses do capital, não importa se nos marcos do mal denominado neodesenvolvimentismo. Nesse sentido, temos uma das maiores ameaças sobre a universidade na história recente das instituições. O dramático é que os reitores celebraram a heteronomia, pois acham que a mobilidade dos recursos de um exercício para o outro é uma grande vitória. O preço a pagar por esta pequena "conquista" será muito alto, mas quem pagará a conta serão os trabalhadores que necessitam de uma universidade autônoma para que possam produzir conhecimento novo imprescindível para superarmos os grandes problemas dos povos.
 
Correio da Cidadania: Parece, de todo modo, que, no geral, há uma orientação das IFES como entusiastas e cada vez mais defensoras da entrada de recursos privados em instituições públicas de ensino superior, não?
 
Roberto Leher: Como disse, aqui temos a questão mais axial do projeto de autonomia geminado com o fortalecimento das fundações ditas de apoio privado. O aprofundamento da condição capitalista dependente do bloco de poder requer a destruição das bases para um projeto nacional e popular. A prioridade do atual bloco de poder, bloco gerenciado pelo governo Lula da Silva, é disputar espaços na economia mundial a partir do aprofundamento do imperialismo. Isso significa mais dependência e uma maior interconexão com as corporações multinacionais.
 
Tudo isso se traduz na hipertrofia do capital portador de juros e do setor de exportação de commodities. Quando a universidade é colocada para servir a estas frações burguesas, temos uma profunda perda da função social da universidade. A universidade deixa de ter como função a produção do conhecimento para a solução dos problemas dos povos e deixa de ser uma instituição comprometida com a verdade e com o conhecimento objetivo e rigoroso da sociedade e da natureza. A instituição converte-se em uma organização operacional, voltada para objetivos particularistas dos financiadores.
 
O drama é que esses contratos nada têm a ver com a missão histórica da universidade. A lei de inovação tecnológica procura impor à universidade uma função que, no capitalismo, sequer é realizada no espaço universitário: a pesquisa e desenvolvimento (ou inovação). Nos países da OCDE, perto de 80% a 90% das inovações são realizadas dentro das empresas. Como as empresas localizadas no Brasil não possuem departamentos com estes fins, pois isso é feito em suas matrizes, o governo pretende subsidiar os custos da pesquisa e desenvolvimento deslocando essas atribuições para a universidade. Isso pode levar a uma completa descaracterização da universidade, com a destruição de sua autonomia frente ao governo e aos interesses do capital.
 
Concretamente, podemos vislumbrar uma situação em que o povo brasileiro deixaria de poder contar com suas universidades. Isso seria um retrocesso brutal na luta por um projeto civilizatório capaz de superar a barbárie que nos assola no cotidiano.
 
Correio da Cidadania: Estamos, portanto, diante do inexorável trunfo do mercado para impor seus ditames, apropriando-se de descobertas, inovações e demais adventos de relevância social com o resultado do trabalho de profissionais dessas instituições. Enfim, ao final, não se atenta exatamente contra a autonomia universitária?
 
Roberto Leher: Sim, o controle da produção do conhecimento pelo capital, por meio das patentes e das demais formas de propriedade intelectual, aumenta a heteronomia da universidade, tornando-a cada vez mais débil diante dos desafios no campo da saúde, da agricultura, da energia, da educação, das engenharias etc. Objetivamente, como pensar uma agricultura que fortaleça a soberania alimentar dos povos se toda pesquisa é auspiciada pela Monsanto? É obvio que as pesquisas da Monsanto estão a serviço de suas sementes transgênicas e de seus insumos agroquímicos associados a essas manipulações genéticas. O mesmo pode ser dito sobre as pesquisas da indústria petroleira no campo da energia ou das farmacêuticas no campo da saúde pública.
 
Correio da Cidadania: O ANDES já mostrou sua insatisfação e desaprovação com o plano. Houve um debate a contento da pauta da autonomia universitária, envolvendo todos os interessados, inclusive a sociedade? O governo deu algum ouvido a esses debates no período que antecedeu sua aprovação?
 
Roberto Leher: Não houve debate sobre o tema. A edição de uma MP comprova isso. O governo escutou essencialmente as corporações que precisam de plataformas de apoio em termos de Pesquisa e Desenvolvimento, mas que não estão dispostas a investir pesadamente nesse campo. Com isso, atendem também aos setores universitários engajados no capitalismo acadêmico.
 
É preciso revigorar o debate para que possamos fortalecer as resistências a essas medidas heterônomas. Para isso, o trabalho de argumentação com os segmentos acadêmicos genuinamente comprometidos com a ética na produção do conhecimento é prioritário. O protagonismo estudantil é igualmente crucial e imprescindível. Estou convencido de que o ANDES-SN estará profundamente empenhado nessa direção, pois o Sindicato possui um projeto de universidade laboriosamente construído em mais de 25 anos de luta, que a concebe como radicalmente pública.
 
A luta, contudo, tem de ser por um outro projeto de universidade e, por isso, o ANDES-SN deve seguir atualizando o seu projeto frente aos desafios impostos pela conjuntura.  Não creio em uma tática puramente reativa. O ANDES-SN e o movimento estudantil autônomo devem perseverar no trabalho político de ampliação do arco de forças em prol da educação pública, universal, gratuita, unitária e comprometida com a crítica à colonialidade do saber.
 
Roberto Leher é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenador do Observatório Social da América Latina – Brasil/ Clacso e do Projeto Outro Brasil (Fundação Rosa Luxemburgo).
 
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
 
Colaborou Gabriel Brito, jornalista, Correio da Cidadania.

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